Conversas

CONVERSA 1 – (Maria de Lourdes Bairão Sanches e Pe. Vitor P.C dos Santos)

Maria de Lourdes– psicóloga, analista junguiana, membro da International Association of Analytical Psychology, membro da Associação Junguiana do Brasil, coordenadora do curso de especialização em psicologia analítica da PUC-PR.
Vitor– padre, mestrado em Liturgia pelo Pontifício Instituto Litúrgico “Santo Anselmo” de Roma, diretor do Studium Theologicum de Curitiba, professor de liturgia, especialista em psicologia analítica.
Maria Lourdes – Qual o sentido de um site sobre os estudos junguianos?
Vitor – Este site junguiano será um veículo de comunicação entre todos os que estudam a psicologia analítica. Por meio dele os estudos junguianos podem ser mais conhecidos na atualidade considerando que a internet é um meio muito rápido e prático de divulgar dados, estudos, compartilhar opiniões, trocar idéias. E o que você acha?
Maria de Lourdes – Embora a internet ainda não faça parte da minha realidade cotidiana penso que será uma das formas mais importantes de comunicação das novas gerações. No final de 1996 quando terminou o primeiro curso de especialização em psicologia analítica da PUC-PR estivemos às voltas com a continuidade deste grupo que se formou fora do ambiente acadêmico. Apesar das boas intenções de todos nos, poucas vezes conseguimos nos reunir e nos comunicar. Agora, ao término do segundo curso, a internet nos oferece esta possibilidade de troca de idéias e de comunicação não institucionalizada, dentro de uma perspectiva de co-responsabilidade .
Vitor – Por que o curso de especialização em psicologia analítica em uma universidade?
Maria de Lourdes – As sociedades junguianas no Brasil (Associação Junguiana do Brasil – AJB e Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA) recebem da International Association for Analytical Psychology – IAAP, a designação para formar analistas junguianos em nosso meio.
Vitor – Então este curso também visa a formação de analistas?
Maria de Lourdes – Não, este curso é essencialmente acadêmico e não visa a formação de analistas. Inclusive o tempo de curso e de 2 anos no máximo e para a formação do analista são necessários de 4 a 6 anos. No entanto, este curso tem algo em comum com a formação do analista porque é um curso que visa introduzir os alunos a um tipo especial de conhecimento que é o da atitude simbólica. Nesta medida, o curso ao invés de promover a especialização, promove um olhar mais amplo sobre a questão da relação entre o mundo consciente e o mundo inconsciente.
Vitor – Este curso é dirigido somente a psicólogos?
Maria de Lourdes – Não, outras áreas do saber que não somente a psicologia podem usufruir deste olhar profundo proveniente do pensamento simbólico e a universidade é um local onde muitas formas do saber convivem, por isso este curso é oferecido para graduados em qualquer área. E você como padre, que participou do curso, qual a sua opinião?
Vitor – Para mim o curso foi de extrema importância considerando sua a afinidade com o pensamento teológico, sobretudo o que envolve o pensamento simbólico como podemos encontrar na sagrada escritura, na teologia e particularmente na liturgia que celebra os mistérios da fé por meio dos sacramentos, isto é, por meio de símbolos. Também a pastoral, sobretudo, o aconselhamento ou direção espiritual e mesmo a confissão usam da psicologia.
Maria de Lourdes – Na minha opinião o treinamento para a direção espiritual e para a confissão aproximam-se mais do processo de formação do analista do que da aquisição de conhecimento através de um curso de especialização pois envolvem uma vivência do processo simbólico mais do que uma aprendizagem do pensamento simbólico.
Vitor – Como você salientou, o mesmo se dá no curso teológico. Realmente a formação para a confissão e direção espiritual envolvem um processo vivencial. Mas ainda que pese o fato de deste curso de especialização ser acadêmico, ele vem destacar alguns elementos teóricos que nem sempre são considerados num treinamento prático para a direção espiritual e para a confissão. A seu ver esta distinção entre teoria e prática se dá também em outras áreas?
Maria de Lourdes – Já tivemos alunos de outras áreas que puderam aproveitar o curso para o aprimoramento de seu papel profissional: por exemplo, um advogado que trabalhou a tipologia aplicada à advocacia criminal; outra, da área da odontologia que se deu conta da importância simbólica do contato com a boca e mesmo psicólogos que trabalham em empresas, em hospitais, etc. que reorganizaram seus trabalhos a partir desta nova perspectiva. Em todas estas áreas não basta ter o conhecimento técnico, todas elas envolvem uma rel. interpessoal e pedem uma abordagem simbólica.
Vitor – Parece que de fato o estudo da psicologia analítica tal como é proposto no curso pode e deve continuar, já que envolve uma dimensão que vai além do estudo acadêmico abrangendo a experiência de vida, o cotidiano das pessoas. Neste sentido qual seria a contribuição deste site?
Maria de Lourdes – Então, quero aproveitar a oportunidade, para mais uma vez reforçar que seria uma pretensão muito grande falar de um curso de especialização em apenas um ano e meio, tendo em vista a vastidão da área denominada Psicologia Analítica. Acredito que possibilidade de todos nós continuar dialogando, trocando muito da bibliografia existente na área, compartilhando as dificuldades na realização de muitos dos trabalhos aqui elencados, tudo isso poderia ser promovido por este site da internet que se realimentará à medida em que acontecer de fato um processo de comunicação. É como se estivéssemos, em conjunto empenhados num “processo de individuação” do próprio curso, é como se estivéssemos “processando” o curso, recebendo inclusive colaborações de outros estudiosos, mais afastados deste núcleo inicial. Assim sendo, imagino que, esta tentativa de revista “on line”, alcançará melhor nossos objetivos do que a realização de uma revista impressa como pensamos inicialmente.
Vitor – Só nos resta esperar que de fato este meio de comunicação se efetive e por isso contamos com a participação de todos os que o acessarem enviando mensagens, sugestões de bibliografia, estudos, opiniões e participando dos debates.

CONVERSA 2-(Letícia Capriotti e Armando Silva)

 

Armando de Oliveira e Silva – psicólogo, especialista.
Letícia Maura Capriotti – psicóloga, especialista em psicologia analítica.
Letícia: Bem, Armando, eu sei que você é da segunda turma de psicólogos do Paraná, se formou em 1974, e tem de tempo profissão o que eu tenho de idade. Gostaria de saber como você chegou ao Jung.
Armando: Olhe, na época era difícil porque só existiam dois livros dele publicados em português: o “Psicologia e Religião” e o “Tipos Psicológicos” publicados pela Zahar, os dois traduzidos por aquela ‘pérola’ da tradução que é o Álvaro Cabral. O Tipos foi na realidade um livro reescrito pelo Álvaro Cabral.
L: Bem, e como era possível estudar Jung se vocês só tinham essas duas traduções ruins?
A: Olha, nós íamos tateando meio às cegas. O primeiro volume traduzido pela Vozes foi o vol. VII, as duas brochuras que compõem o volume VII. Foi por aí que eu começei a estudar. Daí entrei em contato em São Paulo com a Denise Ramos e ela veio a Curitiba e montou um grupo de pessoas que estariam na época interessadas em estudar o Jung.
L: Era bastante gente?
A: Éramos inicialmente umas seis ou sete pessoas. E começamos a estudar exatamente o volume VII. E nesse grupo da Denise foi que eu aprendi que eu não tinha dificuldade em ler o Tipos, que era o livro que tinha dificuldade em ser lido. Foi por aí o caminho. Mais ou menos na mesma época tinha um outro grupo em Curitiba se formando, se construindo…
Mas eu queria dar uma sugestão: melhor do que eu ficar aqui falando da minha trajetória, eu daria a sugestão para você que a próxima entrevista fosse feita com algumas dessas pessoas que fazem parte dessa primeira geração juntas, para que cada um possa lembrar os seus fragmentos dessa história do Jung em Curitiba. Reunir os grupos que estavam começando a estudar Jung e a gente tentar lembrar… E talvez num outro momento vocês encontrem as pessoas que são descendentes dessa primeira geração e possam ouvir a história que eles contam. Porque você já é de uma terceira geração.
L: É interessante porque essa minha geração já encontra tudo mais pronto, a PUC/PR com um curso de especialização, um Jung já mais estruturado, mais organizado, e pelo que você está me falando vocês tiveram que organizar a obra do Jung na cabeça de vocês sozinhos, com ajuda de pessoas de São Paulo, indo a São Paulo…
A: E aí tem uma geração intermediária antes da sua e depois da minha que vale a pena também reunir e ouvir a história deles. Acho que da mesma forma que a gente estuda o Jung, e eu pessoalmente defendo essa teoria, sempre defendi quando dava aula, da necessidade de se estudar historicamente, ordenar. Talvez fosse importante estudar a história da psicologia junguiana em Curitiba nesse mesmo contexto: quando, como, as dificuldades, os limites,… Eu só estou dando um viés, talvez vocês possam ter uma idéia, uma história interessante. Bem, pode ser que a história não seja interessante, mas o elenco dessa história é muito interessante! É só você conseguir reunir todo esse elenco que vale a pena. Fica então uma sugestão para a página de vocês.
L: Bem, então eu tenho outra pergunta, que não é bem uma pergunta, é mais um pedido para que você fale sobre isso. Você se interessa muito em estudar a obra do Jung no contexto histórico, você busca ler os autores que Jung lia e que ele cita, busca contextualizar os escritos dele, ir atrás dos fatos e não da interpretação dos fatos…
A: É, aí entra uma questão muito importante: a de diferenciar ‘reverência’ de ‘referência’. Jung para mim é uma referência. A forma de a gente destruír a reverência é contextualizar, é ler historicamente, é ler criticamente, é ler originalmente o Jung, quem ele leu e quem ele cita. Aliás a gente precisa ler tanto o Jung quanto quem o Jung leu, não tanto quem leu o Jung. Acho que com isso você vai desconstruindo e reconstruindo outro Jung: ele vai virar uma referência dentro de uma teoria maior que é a teoria do inconsciente. Uma das grandes construções do século vinte é a teoria do inconsciente, da qual o Jung faz parte, é o construtor. Não é o único, mas tem um peso muito grande. Eu acho que a gente não pode nunca se afastar do Jung, temos que buscá-lo de volta. Quanto mais se busca, mais se surpreende. Quanto mais você acha que você já leu, você tem a certeza de que não leu, quanto mais acha que conhece, você tem a certeza de que não conhece. Claro que isso corre paralelo a outra questão que é importante: nesse tempo desde o começo do meu interesse para hoje a produção teórica junguiana é muito grande.
L: Tanto as obras que foram traduzidas quanto os pós-junguianos…
A: Exatamente. E coisas do próprio Jung que não foram publicadas e agora estão sendo publicadas. Se você lê o Jung das obras completas ele é um Jung, o Jung dos seminários é um outro Jung diferente, complementar. Hoje se tem esse privilégio, e talvez você já pegue esse privilégio muito mais vivo…Então podendo amarrar esse universo todo você dá conta da importância, do significado, do sentido da obra do Jung. E ainda tem muito o que ser publicado do próprio Jung, embora infelizmente as coisas aqui no Brasil sejam publicadas e não traduzidas.
L: Por quê? É mal traduzido ou não é traduzido?
A: Mal traduzido, não traduzido… Então pode-se ter uma interpretação errônea… Não se publica e fica por isso mesmo. E aqui vai uma outra sugestão: nesta página da internet que se publique uma sessão de reclamações. Tem que ter uma sessão de reclamações: erros de tradução, por que tal livro não está publicado, por que foi omitido. Isso precisa ter. Se não se faz oficialmente, quer dizer, a nível institucional para as editoras responsáveis pela obra do Jung e de autores junguianos, então que se faça pelo menos de alguma outra forma. Uma sessão de reclamações que exista sempre, com pessoas atentas a estar informando. Eu acho que tem que ter uma página não só com resenhas de livros publicados, mas que também fale sobre a qualidade da publicação, da tradução, etc. Que se dê chance de a gente poder reivindicar o direito que as pessoas têm de ler o Jung como ele escreveu e não como ele foi traduzido, como ele foi interpretado ou entendido pelo tradutor, como ele foi omitido…
L: É verdade. Eu que estou começando a estudar o Jung agora percebo que sem esse tipo de referências é muito fácil incorrer em erros graves de interpretação, é como andar às cegas…
A: Se a gente lendo, tentando ler o Jung pelo menos em inglês já é confuso, não é uma leitura fácil, linear, cristalina, então você imagine compreender isso nessa passagem para a língua portuguesa com todos os erros, etc.
L: E as omissões que eu acho que são mais sérias porque são um desrespeito a quem está estudando…
A: Não, são um desrespeito a quem escreveu! É um desrespeito ao Jung! Ele já é desrespeitado quando a ele são atribuídas coisas que ele não fez, e acho que ele é desrespeitado mais uma vez quando se traduz o que ele não escreveu, o que ele não disse, do jeito que ele disse…
L: Ou quando não se traduz o que ele disse…
A: Exatamente. É um desrespeito. Se alguém está sendo desrespeitado em primeiro lugar é o Jung, e depois as pessoas aqui no Brasil que pelo menos tentam entender o Jung, ler o Jung, decompor essas imagens errôneas do Jung e se deparam com uma outra coisa.
L: Mas aí você não está reverenciando?
A: Sim, não deixa de ser uma forma de reverência, mas é uma reverência que não elimina a possibilidade crítica, não uma idolatria mas um respeito. Talvez essas pessoas que reverenciam o Jung nunca tenham percebido a irreverência do Jung. Se a gente pegar a história do pensamento de Jung vamos perceber que onde ele colocou a mão, pelo que se interessou, sempre fez de uma forma fora do habitual, fora do estabelecido, e quando devolveu para o mundo nunca devolveu da mesma forma. As pessoas fazem uma reverência cega, que impede de ver esse lado irreverente do Jung.
L: Não que a gente não possa reverenciar o que a gente gosta e que é bom…
A: Acho até que se deve, pela contribuição dele, todo edifício teórico que ele construiu deve ser reverenciado, mas não de uma forma cega.
L: Eu falo isso porque tenho medo de super-reverenciar, como vi já em alguns colegas que tinham uma reverência cega, uma idolatria pelo Jung. Lembro que certa vez uma pessoa dessa sua geração me disse que achava muito bom ter sido behaviorista antes de ser junguiana porque assim podia ver Jung com outros olhos. Então fico com medo de, por não ter tido nenhum contato teórico sério com nenhum outro autor, por estar começando com ele, de cair em uma reverência cega.
A: Mas você tem uma possibilidade de estudo dentro do Jung que hoje é diferente. Essa primeira geração teve que ir depurando, teve que ir tateando. Por que uma pessoa que já tem essa referência mais organizada tem que repetir esse caminho todo para chegar ao Jung? Não sei, acho que não precisa. Você já tem um contato com esse Jung mais depurado, mais criticado, mais contextualizado. Ele já chega para você de uma maneira mais organizada, pelo menos através das pessoas com quem você estuda.
L: O que é uma maravilha porque poupa um caminho tremendo.
A: Se você for ver cronologicamente, talvez você tenha oportunidade de estar lendo coisas do Jung ao mesmo tempo que qualquer uma dessas pessoas que tiveram esse longo tempo atrás, por uma questão de edição, de publicação, etc. Você está correndo paralelo e simultâneo, mas ganhando tempo.
Mas eu gostaria de dar um exemplo a respeito do que falei anteriormente acerca da atitude de desrespeito e falta de cuidado na publicação dos escritos de Jung. No texto fundamental, de estudo obrigatório, “Considerações teóricas sobre a natureza do psíquico” (vol. VIII – Editora Vozes) no parágrafo 380 pode-se ler: “Onde predomina o instinto começam os processos psicóides que pertencem à esfera do inconsciente como elementos capazes de atingir o nível da consciência”.
A frase correta é a mesma, só que ao invés de “capazes” é “incapazes”. É uma pequena troca de palavras, que compromete na realidade todo o sentido da frase e, por extensão, do parágrafo e, mais ainda, o conjunto de idéias que estão sendo trabalhadas ao longo do texto.
L: Quer dizer que quem não percebe esse “pequeno detalhe” teve seu estudo do texto comprometido!
A: Pois é!!!
L: Armando, infelizmente nosso tempo está acabando…
A: Para encerrar essa conversa, gostaria de citar Jung no Seminário de 1925. Jung nas primeiras aulas faz um percorrido autobiográfico (muito do que foi posteriormente publicado no “Memórias, Sonhos, Reflexões”) e ao terminar a quarta aula diz:
“Agora esgotou-se o tempo e eu contei-lhes uma grande quantidade, mas não assumam que lhes contei tudo”.

CONVERSA 3- (Renata Wenth e Elisabete Tassi Teixeira)

Elizabete Tassi Teixeira – psicóloga, especialista em Antropologia, analista de orientação junguiana, escritora e professora no curso de especialização em Psicologia Analítica da Puc-PR.
Renata Cunha Wenth – psicóloga, especialista em Psicologia Analítica, analista de orientação junguiana e professora no curso de especialização em Psicologia Analítica da Puc-PR.
Renata: Betinha, observo e admiro sua relação com as “outras artes” (pensando,junto com Jung, no trabalho analítico como uma arte¹) e seu refinamento,sensibilidade – quase leveza.
Você efetivamente transita pela literatura: escreve livros², continuamente os cita.Há seu evidente interesse pela pintura e fotografia, sempre pronta a incentivar estes artistas. Assim como, seu interesse pela memória cultural, seja de uma família ou cidade³.
Certamente isto particulariza seu trabalho como analista e sua relação com a psicologia analítica, não acha?
Betinha: É, particulariza sim. Quando coloco um livro de arte na sala de espera de meu consultório sinto e sei que já está sendo ativado algum ponto do inconsciente das pessoas.
É evidente que isso faz parte de minha história, do entrelaço ao longo da vida onde as experiências familiares com a arte(4) se mesclaram com meu fazer, seja na psicologia ou no cotidiano.
Daí a consciência de que a arte é algo maior,mais abrangente, não importando o lado em que você está situado: pintando ou olhando.Ou você faz arte, ou você é tocado por ela. A comunicação que se estabelece a partir do objeto artístico (seja livro, cinema, fotografia, pintura,escultura, música )com o observador é única. É o se defrontar com a imanência. Como diz Campbell, “A arte é a vestimenta de uma revelação”(5).
Renata: Outro dia li uma matéria(6) na Folha de São Paulo, onde o autor falava sobre a situação da arte contemporânea. Denunciava o fato desta atualmente estar distante do cotidiano, inclusive de haver uma separação entre arte e cultura. As sociedades eram mais “cultivadas”,não nos esquecendo da relação entre cultivo e cultura. De certa forma, critica a posição alienada da arte de hoje, relegada aos museus e galerias.
Parei para pensar na arte que ,enquanto analistas, praticamos todos os dias ao buscar pela particularidade do ser de cada paciente. Estaríamos aí promovendo uma união entre arte e cultura? O simples “ser”(isso não é nada simples) de um individuo já é uma arte!
Betinha: O cliente também vem em busca de uma transformação. Sair da estagnação, da alienação.Caminhar e se deixar iluminar pela arte do inconsciente. Neste momento já estamos re-unindo arte e cultura.
Renata: A análise é a arte do encontro, do fazer emergir algo além dos sujeitos envolvidos e se dar conta das animadas tramas da vida.
Betinha: Porque a arte do que está sendo tecido é para além da compreensão imediata.São as tramas do destino que a arte da análise revela(7). Terapeuta e Cliente são instrumentos de um fazer maior.
Renata: Somos re-construidos através do “parto que facilitamos”. Inclusive esta é outra questão: as dores do parto.
Betinha: O parto só é possível porque existe uma inquietação, uma dor que urge pelo novo.
Renata: O novo que precisa nascer como caracteriza Gilles Deleuze(8): “Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo do que tem absoluta necessidade.”
Betinha: Na visão de Jung(9), Fausto “fez” Goethe, não o inverso. A arte faz o homem.
Reduzir a obra de arte à personalidade do artista, é impedir a possibilidade de revelação.
O artista é um inconformado com a finitude. É como um arqueólogo que escava para trazer à luz a Permanência das coisas . Não se restringe a observar a beleza do objeto. Vai além, extraindo suas novas possibilidades. Das profundezas do inconsciente coletivo, munido do espírito da época , faz nascer aquilo que está adormecido. Insiste como Tarkovski: “Mas tem que haver mais(10).”
Renata: Penso que o artista tem olhos para o diferente, muitas vezes “apenas”(isso não é pouco) troca as coisas de lugar; justamente porque enxerga nelas algo de especial¹¹, fora do convencional, daquilo que é aparente .Como se captasse um outro sentido, uma outra forma de ser.
Quando as crianças fazem coisas fora da “ordem” dizemos o que? Olha a arte ,menina!
Betinha: Isto mesmo, elas são “arteiras”. Existe uma “transgressão” na arte. É um desvendar para além do ego.É buscar a revelação do espírito.
Na análise também ocorre aquele momento onde nasce a ” transgressão”. Existem outros “eus” esquecidos, abandonados, que precisam brotar. A arte está em tramar a coragem para deixar nascer estas novas possibilidades.
Renata: Uma certa irreverência para “sair da linha”, para captar aquilo que está “escondi-do” dentro de nós e desvendar o essencial .Olhar de um jeito novo para tudo aquilo que nos é “dado”. Dar uma de “arteiro” com aquilo que temos à mão.
Betinha: Este é o verdadeiro movimento da energia onde podemos encontrar o sentido da vida. Como diz a poeta paranense Helena Kolody: “Deus dá a todos uma estrela. Uns fazem dela um Sol. Outros nem conseguem vê-la.”
Renata: Mas, faz uma enorme diferença buscarmos pela “transgressão” de cada paciente enquanto possibilidade de “arte”, de um “nascimento”, do que termos uma fixação pela patologia ou pela interpretação . Me entende?!
Temos olhos que incluem também o conflito, a doença, a loucura. E, ao mesmo tempo tudo isso fica pequeno diante da imensidão de novas formas de vida que cada um de nós contém.
Assim procuramos pelos olhos da criança, sempre brincando com o mesmo brinquedo cada vez de um jeito diferente, enxergando algo de novo e se maravilhando.
Betinha: Se recuperarmos este olhar, recuperamos o eterno que mora em todas as coisas.
Renata: E a Vida começa a se abrir diante de nós.

Notas

¹[…] “a análise não é um método que possa ser monopolizado pela medicina; é também uma arte, uma técnica ou uma ciência da vida psicológica, que devemos cultivar depois da cura para nosso próprio bem e para o bem de todos.”
JUNG, C.G. O eu e o inconsciente.c.w.7/2. p.148.
²A Bailarina, desembro de 2000
A Mulher do Armário, 1995
A Grande Delícia, 1998
Adágio das Rosas – 2000
Antequera, 2004
Azul Paranaguá, Fragmentos, 1995
Hotel Tassi- O antigo Hotel da Estação,1991
Noturno em Segóvia, 2000
³Azul Paranaguá, Fragmentos, 1995
(4)Meu avô foi um dos primeiros fotógrafos amadores de Curitiba, era um “retratista” e pintor. Muitos familiares transitam e atuam na pintura e na fotografia.
(5)CAMPBELL,Joseph. A Transformação do Mito através do tempo.Cultrix,1990.
(6)KURZ,Roberto.Matéria: O Fantasma da Arte. Jornal Folha de São Paulo,04 de abril de 1999.
(7)”O segredo do mistério criador, assim como do livre-arbítrio, é um problema transcendente e não compete à Psicologia respondê-lo. Ela pode apenas descrevê-lo.”
JUNG,C.G. O Espírito na Arte e na Ciência. c.w.15 (155)
(8)Jornal Folha de São Paulo, 27 de junho de 1999, Caderno Mais.
(9)”[…] não é Goethe quem faz Fausto, mas sim a componente anímica Fausto quem faz Goethe.”
JUNG,C.G. O Espírito na Arte e na Ciência. c.w.15 (159).
(10)TARKOVISKI,A.Esculpir o Tempo.Martins Fontes, 1990.
(11)Nas palavras de Rubem Alves: “O escritor não é alguém que vê coisas que ninguém mais vê. O que ele faz é simplesmente iluminar com os seus olhos aquilo que todos vêem sem se dar conta disso. E o que se espera é que as pessoas tenham aquela experiência a que os filósofos Zen dão o nome de “satori”: a abertura de um terceiro olho, para que o mundo já conhecido seja de novo conhecido como nunca o foi.”
ALVES,Rubem. O Retorno e o Terno – crônicas.Papirus,1999.

Essa conversa durou alguns dias e várias horas;
nas tramas de nossos encontros fomos aos poucos
nos revelando.Fizemos: Arte no pandeiro!

26 jul. 1875 – Carl Gustav Jung nasceu em Kesswil, no lago Constança/Konstanz (Bodensee), cantão da Turgóvia/Thurgau, Suíça.